O escritor e dramaturgo italiano Dario Fo, prémio Nobel da Literatura em 1997, morreu nesta quinta-feira, aos 90 anos. Tinha sido internado há doze dias num hospital de Milão devido a complicações respiratórias, de que sofria há já algum tempo. Numa entrevista ao PÚBLICO, em 2015, justificava porque era escritor e ainda actor, pintor, cantor, compositor e encenador: "A minha perspectiva é a dos homens do Renascimento, capazes de olhar o todo." Era ainda um destacado activista político, conhecido pela sua oposição ao antigo primeiro-ministro de direita Silvio Berlusconi e que o levou mesmo a candidatar-se, em 2006, com 80 anos, à Câmara de Milão.
“Partiu. O actor maior e o maior dramaturgo. O realizador, o argumentista, o empresário. O escritor e o pintor. O homem de esquerda desalinhado, o militante sem bandeira”. É assim que o Corriere della Sera se despede de Dario Fo. O diário italiano recorda uma “existência longa e afortunada” – que o próprio Dario Fo considerava “exageradamente afortunada”.
Também o La Repubblica presta homenagem a um homem que “durante mais de 50 anos, e com a mulher, Franca Rame, revolucionou o mundo artístico italiano” e lembra que ainda em Março, “a sua Milão e todo o país”, celebrou o 90.º aniversário com uma festa pública que durou mais do que um dia e que começou com a inauguração, em Verona, na sede do Arquivo de Estado, do Laboratório-Museu-Arquivo destinado a valorizar o arquivo de Dario Fo e Franca Rame, que reúne “mais de um milhão de documentos”. No seu adeus a Dario Fo, o jornal chamou-lhe "o eterno bobo".
Dario Fo tornou-se conhecido internacionalmente em 1969 quando publicou a peça de teatro Mistério Bufo, uma epopeia dos oprimidos inspirada na cultura medieval e cujo o herói apela à revolta através do riso. A Academia Sueca resumiu assim a sua obra: “Ele emula os bobos da Idade Média, flagelando a autoridade e protegendo a dignidade dos espezinhados.
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"Um provocador profissional", foi assim que os jornais o definiram, quando recebeu o Nobel. Ele não desiludiu e declarou-se “chocado” com a escolha da Academia Sueca, porque a literatura era só uma das suas disciplinas, cultivada enquanto dramaturgo e sempre numa perspectiva de sátira. “Quando falo de algo trágico tento sempre vê-lo com sarcasmo, evito o melodrama. Para mim o sarcasmo é a forma mais eficaz”, explicou na já citada entrevista ao PÚBLICO.
Conta ainda o La Repubblica que “nos últimos tempos [Dario Fo] tinha-se tornando impaciente, querendo fazer, escrever, falar, pintar”. Parecia querer enganar o tempo e deixar ainda mais do que o imenso legado de 90 anos.
O La Stampa recupera a entrevista que deu quando festejou o 90.º aniversário e na qual fala do seu último livro, escrito com Giuseppina Manin e intitulado Dario e Deus. Nessa conversa – “fazê-lo falar nunca foi um problema”, escreve o jornalista – declara-se “ainda ateu” mas convertido ao Papa Francisco. Diz também que a Itália “piorou muitíssimo” em relação ao que era quando ele iniciou a sua carreira. “Havia um público que gostava da sátira, que não se contentava com as verdades oficiais. […] Hoje a Itália está adormecida.”
Na biografia em que recorda a sua infância, conta como a localidade de Sangiano, na província de Varese, onde nasceu a 24 de Março de 1926, foi importante na construção do seu imaginário e da paixão pelo teatro. Sangiano era “o país das maravilhas” com personagens fascinantes e “onde a cultura popular assume a forma de teatro”, resume ainda o Repubblica.
Tudo isto alimentou a sua imaginação até à década de 50 quando desistiu de seguir uma carreira de arquitecto e se propôs fazer pequenos monólogos surrealistas num programa de rádio. Depois vieram as peças em palcos pelo país, altura em que conhece aquela que virá a ser a sua mulher, Franca Rame,
com quem casou em 1954.
Antes disso, ainda durante a II Guerra Mundial, juntou-se como voluntário aos fascistas da República de Salò. Só muito mais tarde, já na década de 70, é que este episódio foi tornado público, provocando grande polémica numa altura em que Dario Fo era já um destacado representante, no campo artístico, da esquerda italiana. Fo justificou-se afirmando que se alistou para não ser deportado para a Alemanha. Quando recebeu o Nobel o assuntou voltou à ordem do dia. “Nunca o neguei”, disse então. “Ofereci-me como voluntário para não levantar suspeitas sobre a actividade antifascista do meu pai.
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Foi em 1970 que publicou Morte Acidental de um Anarquista, outro dos pontos altos da sua carreira, cujo pano de fundo são os ataques bombista da extrema-direita de 1969, inicialmente atribuídos pelas autoridades italianas e pela imprensa aos anarquistas. Esta peça de Dario Fo (que em Portugal foi levada à cena em 1980 com o título Preto no Branco, pelo grupo de teatro A Barraca, com encenação de Helder Costa) parte da morte real de um suspeito “inocente” que cai de uma janela durante um interrogatório em Milão para construir uma peça que explora as ambiguidades dos interrogatórios: um louco, cuja doença é interpretar pessoas reais, acaba por tomar o lugar do juiz na investigação do misterioso caso do anarquista. A mulher, Franca Rame, foi sequestrada por um grupo de extrema-direita - estava-se nos "anos de chumbo" em Itália marcados por actos terroristas tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita.
Entre os trabalhos mais conhecidos de Fo, estão Não se Paga, Não se Paga!, de 1974, que em Portugal foi apresentado pelo Teatro da Cornucópia, em 1981, com encenação de Luís Miguel Cintra. Fo, aliás, já andava pelos palcos portugueses desde que o TEUC, de Coimbra, apresentara em 1975 um espectáculo baseado numa colagem de textos seus e de outros autores. Nos anos seguintes, a par da Corcucópia e da Barraca (que, além de de Preto no Branco, ainda levou à cena Que Dia tão Estúpido, em 1987), também o Novo Grupo apresentou, em 1982, Ouçam Como Eu Respiro, encenado por João Lourenço. Helder Costa, do grupo A Barraca, que conheceu em Paris, quando ele andava na Sorbonne ("ele mostrou-se muito interessado na situação portuguesa"), recorda-o desta maneira: “Ele trabalhava muito na cultura antiga e por isso o seu trabalho era sempre muito especial e muito interessante: sobre o Vaticano, as origens da Igreja, a polícia, a política... Era uma espécie de jogral da idade média, com uma grande paixão interventiva.”
A partir de 1980, o dramaturgo distancia-se do Partido Comunista e publica Trombetas e Framboesas e Escárnio do Medo, inspirado no sequestro de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas e assassinado em cativeiro. Desencantado com a política, pelo menos na sua forma tradicional, decidiu depois apoiar o movimento 5 Estrelas do controverso Beppe Grillo, depositando nele uma "última esperança”.
Aos 87 anos, mais de 15 anos depois de ter recebido o Prémio Nobel, publica o seu primeiro romance, a Filha do Papa, a partir da figura de Lucrécia Borgia. “Nunca tinha experimentado o romance. Foi um desafio. Isto só tem graça enquanto podemos testar coisas”, disse na entrevista ao PÚBLICO na altura da publicação do livro em português.
Matteo Renzi, o primeiro-ministro italiano, reagiu à morte de Dario Fo dizendo que “a Itália perde um dos grandes protagonistas do teatro, da cultura e da vida civil do nosso país. A sua sátira, a sua pesquisa, o seu trabalho cénico e a sua multifacetada actividade artística ficarão como herança de um grande italiano ao mundo.” Já os deputados do movimento 5 Estrelas (que Fo apoiou até final) lamentaram em comunicado a morte do “guia moral do movimento”, como lhe chamou, no Twitter, a deputada Carla Ruocco. “A morte de Fo priva o país de uma grande voz crítica, um guia cívico e espiritual.” O M5S, dizem ainda, perdeu “um ponto de referência fundamental, um companheiro de viagem alegre, genial e profundo.”
Notícia no Jornal Público 13-10-2016
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